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quinta-feira, 7 de outubro de 2010

O DEUS DOS MÍSTICOS

No tempo dos Santos Padres, a teologia, a mística e o magistério caminhavam juntos. Os mesmos homens eram santos e místicos, teólogos e pastores, conseguindo dessa maneira uma íntima unidade entre esses ramos da vida. Infelizmente com o tempo foram entrando as cesuras. A teologia desvinculou-se da espiritualidade, trilhando os caminhos da especulação de cunho filosófico. A espiritualidade circunscreveu-se às experiências mais pessoais, sem articulação com a teologia. E o magistério correu pelas estradas do Direito, da Pastoral.
Com o Concílio Vaticano II, soprou, de novo, um espírito de unidade. A espiritualidade e, sob certo sentido, a mística é apresentada como experiência de todo cristão, e, de modo especial, para quem vai dedicar-se aos afazeres teológicos e pastorais. Todo fiel é chamado a pensar sua fé e, então, fazer teologia. E enfim, todos nós constituímos a “Ecclesia discens”- a Igreja que aprende -, mas também, a seu modo, a “Ecclesia docens”- a Igreja que comunica a outros a verdade. Nesse espírito de maior unidade, cabe ao longo de nosso caminhar no aprofundamento de Deus, perguntar-nos pela experiência mística de Deus, dos místicos e nossa.

1. Traços gerais da experiência mística de Deus

O profeta Jeremias formulou, de uma vez para sempre, o cerne dessa experiência: “Seduziste-me, e deixei-me seduzir, agarraste-me e me submeteste!”. O profeta não consegue fugir de Deus e diz: “havia fogo ardente em meu coração, comprimido dentro dos meus ossos”. Algo quase insuportável! (Jr 20,7-9).
A sedução divina acompanha desde o início a experiência mística. Somos tomados pela beleza atraente do Mistério de Deus ou tocados pelo esplendor majestoso de sua grandeza. Isaías refletiu esse outro lado da infinitude grandiosa de Deus: “Ai de mim! Perdido estou! Pois sou homem de lábios impuros, habito entre um povo de lábios imundos e meus olhos viram o Rei, Javé dos exércitos”. Os serafins, junto ao trono da Majestade divina, clamam: “Santo, santo, santo é Javé dos exércitos. Sua glória enche toda a terra”. E os umbrais do Templo vibram à voz desse clamor e o Templo se enche de fumaça. (Is 6, 3-5).
Intimidade e distância, desejo de fusão amorosa e consciência de infinita diferença, proximidade máxima e fosso intransponível. Esse jogo maravilhoso constitui o coração do encontro profundo com Deus. Ora os místicos salientam um aspecto, ora outro.
No desejo, a mística é união. Na consciência realista é percepção do imenso abismo que separa a criatura do Criador. O Deus dos místicos é um Deus que envolve, que apaixona, que atrai, que chama, que abraça e, no entanto, o envolvido, o apaixonado, o atraído, o chamado, o abraçado percebe-se tão pequeno, tão pecador, tão minúsculo que some, desaparece, mergulha-se no seu quase nada. Em termos comparativos, deparam-se o infinitamente pequeno e o infinitamente grande, o próton e a galáxia.
A geometria analítica tem uma imagem muito bonita para entender o movimento do fiel em direção a Deus na experiência mística. A assíntota é uma tangente a uma curva que só se encontra no infinito. Somos essa assíntota de Deus. Queremos ser infinitos, queremos ser o próprio Deus pela fusão com Ele. Mas isso só será possível no infinito. Quer dizer nunca, porque continuaremos tendendo toda a eternidade para tal união, sem nunca fundir-nos com o próprio Deus. Essa Alteridade absoluta de Deus caracteriza a mística cristã e a diferencia de outras que imaginam um sujeito humano totalmente submergido no oceano divino.

2. Místicos do século XIV: O Mestre Eckhart e um anônimo inglês

Para andar pelos caminhos maravilhosos da experiência mística de Deus e assim aprofundar-lhe o conhecimento nada melhor do que apoiar-nos nos grandes mestres. Eckhart já tem o nome de Mestre. Como ninguém, exprimiu o desejo do encontro único e inefável com Deus, para logo, em seguida, voltar-se, noutra perspectiva, totalmente para as criaturas. A mística não é fuga. É retirada de fortalecimento para retomar com mais energia o caminho do amor ao irmão. Nenhum místico cristão desconhece que o caminho da mística se cruza com o do seguimento de Jesus nos pobres. Na Verdade eterna e pela bem-aventurança, ensina o Mestre Eckhart, se deixamos pai e mãe, irmão e irmã, e tudo o mais, é para depois os encontrar ainda mais queridos. Essa é a beleza da experiência de Deus. Perde-se o amado terrestre, encontrando-o. Encontra-se esse amado, depois de perdê-lo no amor de Deus e do Bem.
A teologia de todos os tempos soube que falar de Deus é um risco, uma ousadia, uma empresa necessária, mas perigosa. Toda linguagem humana sobre Deus, dizia Santo Tomás, diz mais o que Deus não é do que é. Ela procede pelo caminho da negação. Pode negar todo real criado de Deus, porque Ele é infinitamente distante de toda criação. Pode afirmar todo criado de Deus, porque Deus é seu criador. Por isso, prefere-se o caminho do “ora sim”, “ora não”. Assim nos fala o Mestre Eckhart.
A fé cristã distingue-se de toda outra tradição religiosa pela Trindade. Esta não rompe a íntima unidade de Deus. O Mestre Eckhart deixou-se fascinar por essa Unidade primigênia, por esse Um em Deus. “Ele é a riqueza em profusão, porque é um. Ele é o primeiro e o supremo porque é um. Por isso, o Um penetra todas e cada uma das coisas e permanece um, unificando o separado. Por isso, é que seis não são duas vezes três, mas seis vezes um”.
De modo mais misterioso, o Mestre continua falando de Deus Um. “Um significa aquilo ao qual não se pode acrescentar nada. Um é a negação da negação. Todas as criaturas carregam uma negação em si; uma nega a outra”. Como experimentamos isso no nosso cotidiano. Negamos os outros porque não podemos ser eles. Deus nega é essa negação. “Ele é Um e nega todos os outros” no sentido de que “nada existe fora de Deus. Todas as criaturas são em Deus e são sua própria divindade e isto significa a plenitude”. Deus, ao ser a negação da negação, no fundo, é a pura positividade. Sabemos pela matemática que “menos vez menos” resulta “mais”. Somos convidados a situar-nos diante desse Deus pura positividade na atitude mais disponível e aberta. “Estar vazio de toda criatura é estar cheio de Deus. E estar cheio de toda criatura é estar vazio de Deus”.
A mística é caminho de felicidade. “Deve o homem fazer grande empenho em depor sua forma própria e a de toda criatura e em não reconhecer como pai senão a Deus somente; então nada lhe causará aflição ou tristeza, nem Deus nem a criatura, nem o criado nem o incriado, e todo o seu ser, viver, conhecer, saber e amar lhe vêm de Deus, estão em Deus e (são o próprio) Deus”. Afirmação forte e audaz que mostra os anseios dos místicos de perderem-se em Deus e serem um com Deus.
No mesmo século XIV, um místico desconhecido, inglês, deixou-nos a pérola do livro “A nuvem do não-saber”. Reencontramos a mesma tensão entre o anelo de uma união profunda com Deus e a consciência da pequenez distante da criatura. Nesse desejo, está o chamado de Deus. ”Com fina delicadeza (Deus) despertou o desejo dentro de ti e atando-o rapidamente com o freio da ânsia amorosa, atraiu-te mais perto dele, com essa maneira de viver que chamei de “especial”. Chamou-te a ser seu amigo e, em companhia de seus amigos, aprendeste a viver a vida interior com mais perfeição do que era possível na vida comum ou ordinária”. Deus ainda quis mais, diz o anônimo inglês. Com gentileza e suavidade atraiu a alma para um caminho singular. Aí se vive no centro mais profundo e solitário do próprio ser, aprendendo a dirigir o ardente desejo para a forma mais alta e definitiva de amor.
Para exprimir sentimentos fortes da doçura de Deus, os místicos lançam mão de símbolos. “Como pode ser teu coração tão pesado e tão carente de espírito que não se levante continuamente pela atração do amor do Senhor e o som de sua voz?” Deus “te conduziu a suaves prados e te alimentou com seu amor, forçando-te a tomar possessão de tua herança em seu reino”.

3. Santa Teresa e São João da Cruz

Esses dois místicos espanhóis são também poetas. Com beleza lírica descrevem os píncaros da relação com Deus. Santa Teresa exprime de maneira transparente esse sentimento de entrega e fusão de amor.
“Já toda me entreguei e dei
E de tal sorte troquei
Que meu Amado é para mim
E eu sou para meu Amado”.
Deus é o “doce Caçador” que atira e fere, para depois carregar a pessoa ferida nos seus braços de amor. Mais expressivo ainda. Golpeia com flecha envenenada de amor e a alma se faz uma com seu Criador. Já não quer outro amor. E tal fusão chega a tal grau que só a morte parece responder ao desejo de união. Santa Teresa confessa:
“Vivo sem viver em mim
E tão alta vida espero
Que morro porque não morro”.
O místico sente que o centro de sua vida desloca-se. Sai de si e fixa-se em Deus. É o Deus que quer a pessoa para si. Não num movimento de aniquilamento da criatura, mas de sua plenificação. Estar e ser com Deus, não nos faz menos humanos. Teresa não hesita em falar de prisão do amor:
“Essa divina prisão
Do amor com que vivo
Faz a meu Deus cativo
E livre meu coração”.
São João da Cruz, ao lado de Santa Teresa, leva essa experiência mística de Deus aos cumes mais altos. Joga com a mesma imagem de ser ferido de amor. O amor de Deus troca a morte em vida.
“Oh chama de amor viva!
Que ternamente feres
Da minha alma no centro mais profundo!
Pois já não és esquiva,
Acaba já, se queres;
Rompe a teia de encontro tão jucundo!
Oh cautério suave!
Oh saborosa chaga!
Oh branda mão! Oh toque delicado
Que a vida eterna sabe,
E quanto deve paga!
Matando, morte em vida tens trocado”.
É a experiência mística do Deus bíblico da vida. É um Deus que nos toca, nos golpeia, não para deixar-nos sofrendo, mas para despertar mais amor ainda. Deus amor presente e transcendente. Esconde-se ou foge como uma corça veloz, deixando-nos feridos pela ausência, mas clamando por Ele. Tudo fala dEle: bosques e matas cerradas, plantadas pela mão do Amado; prado de verduras, esmaltado de flores. A tudo perguntamos por Deus: “Dizei-me, se por vós terá passado?” Encontramo-Lo, e sentimos ainda mais desejo dEle. A grande surpresa é a de ainda vivermos essa vida transitória, uma vez termos vislumbrado a beleza de Deus, “luz dos nossos olhos”.
Deus está bem dentro de nós. João da Cruz extasiado exclama:
“Ó fonte cristalina,
Se eu, nesses teus semblantes prateados,
Visse, ó fonte divina,
Os olhos desejados
Que trago nas entranhas esboçados”!
Poderíamos percorrer todo o Cântico Espiritual de S. João da Cruz e ver como em cada linha aparece essa face maravilhosa de Deus Amado. Esse é o Deus dos Místicos. O substantivo Deus esconde-se freqüentemente no adjetivo substantivado: “Amado”. É o retrato divino dos místicos.

4. O Deus místico de um homem do povo: Antônio Conselheiro

A beleza literária dos grandes místicos pode confundir-nos, pensando que só a eles é dado experimentar a Deus. Mas não. Deus é esse sol resplandecente que tudo penetra e está a querer entrar na mínima fresta de nosso coração. Os corações simples e pobres abrem-se mais facilmente a Ele.
É, muitas vezes, uma experiência de Deus ligada ao sofrimento e a sua condição de pecadores. “Mais sofreu Jesus”! “Este rosário de sofrimentos são castigos de Deus pelos nossos pecados”. Vistos com nossos olhos modernos, temos dificuldade de reconhecer aí uma verdadeira experiência de Deus. Esquecemos, porém, que Deus se deixa captar no horizonte cultural das pessoas. Mesmo vendo no sofrimento um castigo de Deus, o que de fato não acontece, há uma autêntica percepção do Deus da vida. Pois esses pobres sofredores recobram energias para continuar vivendo. Aí está o Deus da vida de todo místico. O sofrimento é a face escura da realidade para ver melhor a luz de Deus. Faz aparecer mais claramente seu fulgor. “O homem é um caminhante degradado neste vale de lágrimas, onde só cruzes vê nascer. Todos somos forasteiros, o céu é propriamente nossa pátria, a vida uma jornada que se faz por país estranho”.
“Só Deus é grande, só Deus é a suma verdade...Só Deus é rico e Todo-Poderoso”, repete nosso místico popular Antônio Conselheiro. Sem entrar no mérito de que se ele chegou ou não às raias do fanatismo, foi, sem dúvida, homem espiritual. Na simplicidade de sua teologia, afirma que “na antiga lei podia o homem duvidar se Deus o amava com ternura”, por causa de suas punições severas, “mas depois de o ter visto derramar o seu sangue num suplício e morrer, como podemos duvidar se nos ama com toda ternura do seu coração?”
Antônio Conselheiro prossegue em seu sermão sobre os Dez Mandamentos: “Também a Santa Igreja exclama no transporte da sua admiração: Oh! maravilhosa condescendência de vossa ternura. Oh! rasgo incomparável de caridade! Para resgatar o escravo entregastes o Filho. Oh! Deus infinito! Como pudestes usar conosco de ternura tão amável. Quem poderá jamais compreender o excesso desse amor, pelo qual para resgatar o escravo quisestes dar vosso Filho Unigênito? Deus nos deu seu próprio Filho e porque motivo? Unicamente por amor”.
Um homem tão rude, que enfrentou o exército brasileiro numa luta suicida, quando fala de Deus e de Jesus, desmanchava-se em expressões de ternura. Na sua ingenuidade teológica, ele passa da pessoa de Deus (Pai) para o Filho Jesus numa continuidade ininterrupta. Mas o que lhe interessa é salientar a dimensão de Amor. Citando Isaías dizia: “Ide publicar por toda parte as invenções do amor do nosso Deus para se fazer amor dos homens. E que invenções não achou o amor de Jesus para se fazer amor de nós?” Mais adiante acrescenta essas belíssimas palavras: “Vede, ó almas resgatadas, nos diz a Igreja, vede o vosso Redentor sobre esta cruz, onde tudo nele respira amor e vos convida a amá-lo; com a cabeça inclinada para nos dar o beijo da paz, os braços abertos para nos abraçar e o coração aberto para nos amar”.

Conclusão

O Deus experimentado pelos místicos se revela na sua dupla face de Amado próximo e de Transcendente distante, de gerador de vida a ponto de a morte perder suas garras temíveis. É antecipação do gozo da vida eterna. A vivência mística leva a compreensão de Deus ao ponto mais alto da reflexão teológica. Santo Agostinho resume a vida eterna na experiência do silenciar do tumulto da carne, das imagens da terra, das águas e do ar, do firmamento, da própria alma, dos sonhos e das aparições da imaginação, de toda língua, de todo sinal, de tudo que é passageiro. E então nesse maravilhoso silêncio podemos voltar-nos Àquele que tudo fez a fim de que só Ele fale sem se servir de nenhuma criatura. Desta sorte, sem intermédio de nenhuma voz humana ou angélica podemos ouvir a palavra dEle, que amamos nessas coisas. Nessa felicidade imensa atingimos a Sabedoria eterna que permanece sobre tudo, cuja contemplação se prolonga, nos arrebata, nos absorve, nos esconde no seio de suas alegrias. A vida eterna é esse momento de intuição a que anelávamos e então se realizará aquela palavra: “Entra na alegria do teu Senhor”!


J. B. Libanio, SJ

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