A razão moderna, que se radicalizou na ideologia do cientismo e na expressão instrumental, vem sendo questionada em sua onipotência e cientificidade. As ciências empíricas e ditas exatas já não pretendem ser o único sistema de representação criticamente fundado. Já nos distanciamos das proposições do Manifesto do Círculo de Viena . “Não há mistérios; há problemas. E os problemas podem ser claramente formulados, investigados e resolvidos. ‘É real tudo [e somente] o que pode ser integrado no conjunto do edifício da experiência’. ‘A concepção científica do mundo não admite como conhecimento incondicionalmente válido a não ser o que tenha sua fonte na razão pura...’Só existe o conhecimento experimental que se apóia sobre o imediatamente dado’” ( ).
A astrofísica, o mundo quântico, a verificação trágica dos crimes que a razão instrumental tem possibilitado com seus progressos e a tecnologia abalaram profundamente a arrogância da razão científica. Depois da 2a Guerra Mundial vieram à luz barbaridades cometidas por cientistas e tecnólogos que planejaram, realizaram campos de concentração, gulags, câmaras de gás, bombas atômicas e outros artefatos de morte. Quem pode confiar nessa razão? Impôs-se a absoluta necessidade de ela dialogar com a razão filosófica ética, com a teologia, com visões humanistas para redimir-se e reencontrar os caminhos de humanidade.
Cresceu o interesse multidisciplinar, interdisciplinar e transdisciplinar para construir-se uma ciência que sirva à humanidade e não se feche nela mesma, prescindindo dos benefícios ou malefícios que pode causar aos seres humanos.
O tema da dor e da morte poderia ser tratado unicamente sob o ângulo das estatísticas e procedimentos estritamente médicos. No entanto, num clima diferente, em que a razão amplia o horizonte, cabem reflexões de outras fontes. Nesse sentido, este texto empreende uma reflexão sobre tais temas sob a ótica humanista, filosófica e teológica.
A dor e a morte pertencem à singularidade e necessidade da condição humana "A dor é um mistério que atormenta" e a "morte é o preço da vida". Ambas realidades acompanham necessariamente a vida humana. Onde esta surge, carrega consigo as duas companheiras inseparáveis: dor e morte.
Como substantivos a dor e morte são únicas, inconfundíveis. Como adjetivos, elas se multiplicam indefinidamente. Uns adjetivos afetam a natureza humana enquanto corpo, alma, espírito, cultura. Outros traduzem qualidades positivas ou negativas da existência humana. Dor e morte injustas, revoltadas, aceitas, redentoras, inúteis, etc.
Na esteira da reflexão epistemológica de E. Morin, dois olhares diferentes interpretam a dor e morte. Um vem do generalista e outro do especialista. “Penso que no plano das idéias, temos a escolha. Seja decidimos de ser especialista, uma situação totalmente confortável intelectualmente, já que nos é suficiente acumular cada vez mais informações sobre um ponto cada vez mais preciso: termina-se então, como o diz o dogma, por saber tudo do nada. Seja decidimos ser generalista, isto é, meter o nariz, um pouco a cada vez, na física, na química, na biologia, na medicina legal, na psicologia: termina-se então por não ser especialista em nada, mas tem-se a melhor opinião sobre a pessoa humana com que defrontamos e que se chama “homem”. Duas atitudes, duas políticas do saber totalmente diferentes” ( ).
Enquanto a medicina e a psicologia dedicam-se à empiria do fenômeno da dor e morte, a filosofia, a religião e a teologia vasculham-lhe o sentido humano, antropológico, cultural. Sob tal perspectiva, abordá-las-emos.
II. DOR
1. Campo semântico
O campo semântico do termo dor associa-a a sofrimento, aflição, perturbação, pena, tristeza, dó. Cada um dos termos da sinonímia carrega matiz próprio, embora todos se relacionem com o sentido-base de dor. Revelam experiências humanas que todos fazem nem sempre com a mesma lucidez e consciência. No campo da medicina, ela se relaciona com doença. Ninguém procura o médico sentindo dor a não ser na suposição de que sofre de um mal-estar orgânico. Uma pura "dor da alma", interior, espiritual remete o paciente a outra fonte de cura.
2. Duas leituras fundamentais da DOR
A dor afeta o ser humano. Existem duas leituras correntes da maneira como ele se considera a si mesmo em relação à dor. Seguindo o pressuposto cartesiano, dizemos que temos um corpo. Somos natureza ligada causalmente a tempo e espaço, como res extensa em contraposição ao mundo da consciência - res cogitans. A dor acontece no corpo. Cai sob a análise anatomofisiológica. E se faz antes objeto das ciências empíricas, farmacêuticas. Temos uma dor, expressão simples da sua objetivação.
Cabe outra interpretação de cunho antes fenomenológico. Não temos um corpo, mas somos um corpo. A dor afeta-nos a totalidade do ser. Estamos numa situação de dor ou se quisermos, de maneira mais contundente, somos uma dor. É o clássico jogo entre ter e ser ( ).
3. Leitura cartesiana: dor em si mesma
Detenhamo-nos na primeira interpretação materialista, pragmática, metódica. A dor afeta o animal que somos. Atinge o sistema nervoso. Permite uma compreensão neurofisiológica, biológica, anatômica. Liga-se à estimulação do sistema nervoso cerebral no córtex ou talvez tálamo. Suporta-se uma dor, é-se afligido por ela. Procura-se evitá-la. Foge-se dela, busca-se preveni-la.
Estudam-se os parâmetros anatomo-neurofisiológicos das reações dolorosas dos mecanismos receptores, limiares, dos condutores (transmissores) e dos agentes provocadores e inibidores e dos efetivadores. Na perspectiva empirista, a dor pertence ao mundo do absurdo, do sem sentido, fruto ainda da ignorância da ciência ou do sujeito que sofre. À medida que o progresso científico avança, a dor é lentamente vencida na expectativa da superação completa pelas ciências biológicas. É questão de tempo. A única dor permitida é a inicial, enquanto sintoma de uma enfermidade e logo se vencem as duas simultaneamente.
Os olhos do futuro voltam-se para a neurofarmacologia que desenvolve analgésicos cada vez mais perfeitos e com menos efeitos colaterais. Quem ainda se lembra das anestesias com éter, carregadas de riscos e conseqüências desagradáveis para o paciente? A medicina se propõe curar toda dor. Se não o fez, depende de limites a serem vencidos. O capítulo da dor física parece estar nas suas últimas linhas.
4. Leitura fenomenológica
Uma leitura fenomenológica vê mais na dor e vai além da dor física. Dor se assemelha a sofrimento. Fato absolutamente irredutível a simples questão neurofisiológica. Se determinada dor em concreto pode ser superada pelos analgésicos ou o será pela pesquisa farmocológica, o fato da dor é absolutamente inevitável. Pertence à condição humana. Dor e sofrimento são fenômeno especificamente humano. É uma situação vivida como destruição ou ameaça. A relação com o corpo se constitui para além da “substância material” e do corpo biológico. Além da química e de ser um organismo, o corpo significa auto-expressão do sujeito. Existe um Eu corporal que detém seu significado. O ser humano dá a seu corpo uma intencionalidade para além do material e do biológico. O corpo vivido de uma pessoa é um feixe de experiências. O ser humano se faz presente ao mundo pelo corpo.
Ele manifesta a dimensão constitutiva e expressiva do nosso ser, revela o complexo de sistema de valores significativos vividos ( ). A autocompreensão do ser humano vincula-se à compreensão de sua condição, à sua existência corporal e à cultura.
Dor e sofrimento são interpretados segundo se entende o próprio corpo enquanto relação-com-o-mundo, com-os-outros, consigo mesmo. É algo cultural.
Relação entre significado do corpo e dor
Que significado tem o corpo? Este é o problema da dor. Há tantas compreensões de dor quantas temos de corpo. Elas não se excluem, mas representam uma visão estrutural ou conjuntural do corpo.
1) Corpo como fonte de prazer
Na sociedade pós-moderna, avança a concepção hedonista da existência. O prazer torna-se valor central. J.- Cl. Guillebaud não hesita em falar de tirania absoluta do prazer ( ). Busca-se o prazer em todas as coisas e só se faz aquilo que é prazeroso aos sentidos. Eles se tornam janelas abertas para o gozo.
Em tal perspectiva de corpo, a dor é rejeitada como irracional, sem sentido. Vive-se verdadeira algofobia. Não há razão nenhuma de existir. Deve ser evitada e afastada por todos os meios.
Quando bate e se torna inevitável, alguns entregam-se à revolta e até blasfemam contra Deus. Protesta-se contra ela por lágrimas e gritos, se for o caso. Não existe aceitação nem busca de algum significado, porque contraria a finalidade principal de o corpo ser lugar de prazer.
2) Corpo como objeto distante manipulável
Embora a razão empirista venha sendo questionada sob muitos aspectos, a biotecnologia avança alimentando concepção farmacofisiológica do corpo, como objeto manipulável, quase algo fora do eu, um “duplo do homem”. Torna-se objeto esvaziado de caráter simbólico e desprovido de valor nele mesmo. Tal posição lança raízes no século XVIII, na teoria do "homem maquina" de Julien Offray de Lamettrie (1709-1751). Médico, defende rude materialismo biológico, ao rejeitar vida própria da alma. O espírito é função da matéria. Aplica ao ser humano a teoria mecânica, fazendo dele “máquina dirigida”, cujas sensações são expostas a muitos influxos.
Na mesma corrente de idéias, o corpo humano se entende produzido, inventado. Fala-se de corpo pós-biológico ( ), corpo pós-orgânico, remodelado, ‘imaterializado” pela genética, robótica, informática. D. Le Breton forjou, para traduzir tal tendência, a expressão "corpo como rascunho" a ser corrigido pela tecnologia ao sabor do cientista ( ).
A dor não passa de uma linha errada a ser apagada ou corrigida no desenho final. A biotecnologia se crê senhora absoluta da figura derradeira a ser delineada. O rascunho pode ainda ser sujeito à eventual emenda, mas à medida que se consiga esculpir o corpo ideal, a dor será definitivamente abolida. Nesse setor crescem as possibilidades das ciências da vida e da biotecnologia. No horizonte estão as mirabolantes promessas das células-tronco.
Com certa ironia, Maria R. Kehl escreveu uma coluna na Folha de São Paulo com o provocante título: “Com que corpo eu vou”. Ele nos representa “no mercado das trocas imaginárias”, é “principal objeto de investimento do amor narcísico e a imagem oferecida aos outros”; o “escravo que devemos submeter à rigorosa disciplina da indústria da forma (enganosamente chamada de indústria da saúde) e um senhor ao qual sacrificamos nosso tempo, nossos prazeres, nossos investimentos e o que resta das nossas suadas economias” ( ).
3) Corpo como objeto de tragédia ou destino
Não se tem o corpo que se quer. Ou mesmo se sofre pelo fato de ter um corpo. Ele é vivido como imposição inexorável. Problemática lançada de modo dramático pelo cineasta chileno-espanhol Alejandro Amenábar com o filme Mar adentro. Ramón Sampedro, marinheiro, desportista, acidenta-se e fica tetraplégico. Defronta-se com um corpo que já não mais suporta e luta por conseguir autorização legal para cometer um suicídio assistido. O corpo se transformou em fonte de tragédia que não se quer viver.
A solução é suportá-lo de modo estóico ou buscar o extremo da morte em puro estilo grego, como no filme citado. Tudo o que se lhe associa, como a dor, pertence a tal destino. A resposta oscila entre a resignação estóica ou a revolta trágica.
4) Corpo como sacramento de um mistério maior
Demos salto olímpico. Toquemos as raias da religião e da teologia ou talvez mesmo de certa filosofia de caráter transcendente. O corpo humana encerra mistério maior que a própria consciência capta. Somos um corpo ao qual atribuímos sentido invisível e transcendente. O corpo realiza a definição clássica de sacramento da teologia cristã. É sinal visível de mistério invisível. O corpo se torna cristalização do todo da vida do sujeito, feixe de significações ligadas entre si.
E a dor? Insere-se na compreensão do próprio sujeito, de seu ser, futuro e destino. Entra em relação direta com a história pessoal. Revela algo da totalidade desse sujeito. Mostra-lhe o lado de fragilidade. Ele não é deus, nem autocriador, nem senhor modelador de si, como concepções anteriores pretendem defender. Mesmo que "o espírito se faça através do corpo” (Merleau-Ponty)", ele permanece do lado da fraqueza.
Numa visão cristã, vai-se mais longe. A dor adquire significado redentor, que se descobre na fé. Participa-se por ela da paixão de Cristo. Paulo, o judeu perseguidor dos cristãos, se converte e enfrenta vida cheia de sofrimentos. E desenvolve uma teologia que ressignifica as tribulações. Lança um olhar comparativo: "os sofrimentos do tempo presente não têm proporção com a glória que deve ser revelada em nós". O sofrimento torna-se o lugar da esperança (Rm 8, 18-25).
Os sofrimentos tanto de Cristo, de Paulo como os nossos trazem a abundância da consolação (2Cor 1, 5.7). O apóstolo chega a encontrar alegria nos sofrimentos suportados em favor dos irmãos, da Igreja, vendo neles o complemento do que falta às tribulações de Cristo (Cl 1, 24). Há uma conformidade com Cristo no sofrimento e na morte para sê-lo na ressurreição (Fl 3, 10). A cruz pertence à condição de seguidor de Cristo aqui na terra para segui-lo depois na glória (2Tm 3, 11). Idéia que atravessa a espiritualidade cristã de todos os tempos. Semeia-se dor nesta vida, colhem-se vida e glória na ressurreição.
5) Corpo como campo de ascetismo
Tradição de origem platônica e gnóstica, que se estendeu pelos séculos e assumiu formas populares religiosas, considerou o corpo como verdadeiro cárcere da alma. Radicalizou-se, em alguns casos, a aversão ao corpo, produzindo duas atitudes opostas. Ora as pessoas entregavam-se a austeridades extremas, ora a prazeres selvagens de bacanais. Unia ambas as experiências o desprezo pelo corpo.
Encarava-se o corpo como inimigo a ser vencido, domado a fim de que o espírito se abrisse à contemplação. Praticava-se a fuga mundi e desenvolveu-se certo ascetismo. O corpo figura o inimigo do espírito. E a dor, o sofrimento, a penitência eram bem-vindos para vencer tal inimigo. Subjazeu a tal corrente cultural tonalidade maniquéia de ódio e desprezo ao corpo, enquanto matéria. Lá na origem estavam os Espíritos do bem e do mal, que criaram respectivamente o mundo espiritual bom e o material mau.
Nas tradições muçulmana mendicante e hindu itinerante e asceta, existe a figura do faquir que pratica ascetismo rigoroso, insensibilidade física e outros poderes espirituais extraordinários. Também elas participam da rejeição do corpo. E a dor, o sofrimento cumprem função importante de expressão de tal espiritualidade.
Indo mais longe, S. Paulo nos oferece elementos para semelhante atitude espiritual. O ser humano é " " – corpo carnal - enquanto vive sob o signo da morte, do pecado, da animalidade. Torna-se, porém, " pneumatikon" – corpo espiritual - , ao ser introduzido na esfera do divino até a plena transformação pela ressurreição. “Semeia-se um corpo animal, e ressuscita-se um corpo espiritual. Pois, se há um corpo animal, há também um espiritual” (1Cor 15, 44).
A dor, o sofrimento servem para domar a carne até o domínio heróico de si. Paulo confessava: “castigo meu corpo e o domino, para que não suceda que, tendo sido arauto para os outros, venha eu a ser reprovado” (1 Cor 9, 27). Temiam-se as ciladas do corpo. O corpo do cristão está orientado para o Senhor e não para a prostituição, expressão de sua decadência. “O corpo não é para a prostituição, mas sim para o Senhor, e o Senhor para o corpo; e Deus, que ressuscitou o Senhor, também nos ressuscitará a nós pelo poder” (1 Cor 6, 13). "Não sabeis que vossos corpos são membros de Cristo? E então vou tomar os membros de Cristo para fazê-los membros de uma prostituta? Jamais! Ou não sabeis que quem se achega a uma prostituta faz-se um só corpo com ela? Pois está dito: Serão dois em uma só carne . Mas aquele que se achega ao Senhor faz-se um só espírito. Fugi da prostituição. Qualquer pecado que um homem cometer fica fora do seu corpo; mas o que se entrega à prostituição peca contra seu próprio corpo. Ou não sabeis que vosso corpo é templo do Espírito Santo, que está em vós, que recebestes de Deus, e que, portanto, vós não vos pertenceis? Fostes comprados e pagos. Glorificai, pois, a Deus em vosso corpo (1 Cor 6, 15-20). O sofrimento e a dor estão orientados para manter o corpo longe do pecado da carne, simbolizado pela prostituição.
6) Corpo como lugar da beleza: cultivo de sua forma
A pós-modernidade tem desenvolvido o sentido de beleza, embora se questione o código vigente. Em todo caso, o corpo entra na indústria da forma, da estética, da cosmética. Está aí para ser esculpido, mesmo dolorosamente, já não por razões ascéticas, mas estéticas.
O grego prezava muito a beleza do corpo. A ginástica, o esporte, a disciplina rígida serviam para plasmar-lhe a figura elegante do corpo. O modelo humano helênico era "kalo kai agao".. - bonito e bom. A quantas dores as pessoas se submetem para adquirir a beleza do corpo e mantê-la!
Tornou-se famosa na hagiografia a história de Inácio de Loyola. Ferido na guerra, ficara manco. Sujeitou-se a dolorosas operações para readquirir a habilidade de dançarino. Mais tarde, convertido, investe tal energia espiritual no caminho da santidade. E temos o santo.
7) Corpo como lugar da aventura
O corpo é a fragata, o sujeito o timoneiro. Aí está o oceano desafiador. Lança-se em aventuras, enfrentando tempestades e tormentas. O corpo, assim compreendido, impulsiona os aventureiros a treinamentos pesados, a esportes de alto risco, a exercícios físicos violentos.
Em empreendimentos ousados, o corpo é subjugado a dura e dolorosa disciplina. A dor assume o caráter de quinhão necessário para sentir-se o fascínio do perigo, do risco ousado. Na linguagem dos jovens: o corpo é pura adrenalina. A excitação do desafio transforma a dor sofrida em ingrediente necessário para adquirir a destreza exigida.
8) Corpo como lugar de forte emoção e paixão
O corpo faz-se sede de forte emoção, tensão, paixão. Alguém encontra-se em perigo de guerra, sofre acidente violento, é envolvido por paixão vulcânica. Que acontece com a dor? Desaparece. Perde-se até mesmo a consciência da dor naquele instante de alta excitação.
Evidentemente, passado o momento espasmódico, aí sim, a dor emerge com toda virulência. O ser humano experimenta na vida instantes de quase ausência do corpo e portanto da dor. Nos arroubos, nos êxtases, na irrupção de paixão violenta, em acesso de extrema raiva ou em estados paranormais de hipnose, o corpo se eclipsa de modo que se duvida que se esteja nele ou fora dele. É um corpo fora do corpo.
Vejamos o exemplo de S. Paulo. "Conheço um homem em Cristo que há quatorze anos foi arrebatado até ao terceiro céu. Se foi no corpo, não sei, se fora do corpo, também não sei, Deus sabe. Sei que esse homem – se no corpo, se fora do corpo, não sei, Deus sabe – foi arrebatado ao paraíso e lá ouviu palavras inefáveis, que ao homem não é lícito proferir” (2Cor 12.2).
9) Corpo como lugar das psicopatias
O corpo se torna para alguns sede de doenças. "O doente não somente tem sua doença, mas a faz" ( ). Os casos extremos de psicopatia em relação ao corpo se manifestam no masoquismo e sadismo. A dor do próprio corpo é prazer. A dor do corpo do outro é prazer.
Terrível concepção de dor. Ela se transforma em prazer doentio. Alguns chegam a automutilação, a flagelações, encontrando nelas o prazer de se ferir. A figura terrível nesse universo patológico é o torturador. O Brasil conviveu de modo escandaloso com tais pessoas durante o Governo Militar. Aquilo que se lera nos relatos sobre o nazismo, campos de concentração e gulags, aconteceu nos porões da repressão.
Existe o caso paradoxal da "dor sem dor". Corporalmente não há sinais de dor, mas a imaginação ultrapassa o mundo real, objetivo e fantasia algum tipo de dor. Dói sem dor. A dor física habita os subterrâneos da psique humana doentia.
E há dores físicas que escondem a dor maior que mora no interior da pessoa ( ). Estamos no campo da patologia psicossomática, revelando mais uma vez a profunda unidade do ser humano.
Conclusão
Não há dor. Há dores. E elas se entendem e se sofrem no horizonte da compreensão do corpo. O amplo espectro do relacionamento do ser humano para com o corpo permite que a dor também se refrate.
Bibliografia
G. Thinès – F. J. J. Buytendijk, Douleur, in Encyclopaedia Universalis, Paris, EU, 1977, vol. 5, 779-785.
D. Le Breton, Adeus ao corpo. Antropologia e sociedade, Campinas, Papirus, 2003.
III. MORTE
1. Morte como tabu
O termo polinésio tabu, entendido como interdito, ameaça perigosa, temor infundido pelo santo, aplica-se hoje à morte. A cultura moderna e pós-moderna afasta-a cada vez para mais longe, como tabu que ninguém toca, sobre o qual não se fala, que atrai males para si e para a comunidade.
A morte é experiência sempre do outro e nunca de si. Muito próxima a ponto de esbarrar-se com ela a cada momento no noticiário, nos velórios, nos hospitais, nos acidentes. Por outro, extremamente longe do horizonte quando se refere a si mesmo.
A sabedoria popular tem outra visão da morte. Vê-a muito perto. No cemitério de Extrema, cidade mineira na divisa com São Paulo, lemos o epitáfio latino: Fama, fumus; homo, humus; finis, cinis -
Fama, fumaça; homem, terra; fim, cinza. A morte significa lição de realismo para o ilusório desejo de fugir dela. No cemitério do Bonfim, em Belo Horizonte, o mesmo chamado ao realismo: Mortuis morituri: os que hão de morrer (dedicam) aos mortos.
2. Resistência à morte
Nas diversas culturas e religiões, medraram concepções de resistência à morte. No mundo oriental, com incursões em religiões africanas, afro-brasileira e no espiritismo kardecista, a reencarnação desafia a inexorabilidade e irrepetibilidade da morte, ao admitir a volta dos mortos a esse mundo sucessivamente. Ela perde assim o aspecto terrível de ser uma vez para sempre.
A tradição grega platônica conheceu a existência de uma alma imortal, divina, preexistente de tal modo que a morte não passava de um momento de libertação do cárcere do corpo. No livro de Fedon, Platão nos descreve a morte de Sócrates com a serenidade de quem vence a materialidade e garante a imortalidade.
Epicuro nega-a à base de verdadeiro sofisma que parece gozar de evidência:
"enquanto vivemos não há morte;
quando morremos, somos nós que já não somos;
portanto a morte não existe para nós".
O mundo semita conheceu etapas na resistência à morte. A mais antiga e primitiva se exprimia na vitória sobre a morte pela posteridade. A felicidade do velho patriarca era morrer contemplando depois de si as sucessivas gerações de filhos, netos etc.. Não morre totalmente, porque continua a existir nos descendentes.
Em momento posterior, os judeus acreditavam que os mortos desciam ao sheol, a moradia dos mortos. E lentamente começaram a distinguir nela aqueles que um dia seriam arrancados por Deus para a vida e os que permaneceriam aí para sempre. E essa evolução terminou na fé na ressurreição, como aparece no livro de Daniel (Dn 12, 2) e dos Macabeus (2Mac 7, 14.23). Javé é o Deus dos vivos que ressuscitará no último dia os seus servos fiéis. A ressurreição é a mais completa vitória sobre a morte.
Os cristãos herdaram dos judeus esta mesma fé. Somente acrescentaram que ela não acontecerá somente no final dos tempos, mas já foi antecipada por Jesus Cristo que venceu a morte por sua ressurreição. Paulo resume bem esta fé, remetendo-se a uma tradição anterior a ele: "Cristo morreu por nossos pecados, segundo as Escrituras. Ele foi sepultado, ressuscitou ao terceiro dia" (1Cor 15, 3-4). E nesse mesmo capítulo proclama com toda a clareza a ressurreição dos que crêem em Cristo.
Os marxistas resistem diferentemente à morte. O indivíduo volta à matéria de que veio. Sobreviverá nas marcas da história, na memória dos homens, embora tenha desaparecido na sua singularidade individual.
Há resistências que pertencem ao gênero das ilusões, da "filosofia da avestruz". Só existem o presente, o prazer, a pequena felicidade do cotidiano, misturada aos dissabores. Esta é a condição humana. Prescinde-se da morte, como se não existisse. Vive-se como ela não passasse de uma fatalidade. Assume-se um pessimismo existencial. Só é nosso o presente. Façamos dele a melhor porção de felicidade. Todo o resto nos escapa. Não pensemos na morte. Resistamos a ela pelo olvido. Vêm-nos à mente os versos de Schopenhauer.:
"A vida é uma ilusão
A morte nos livra dela
Morrer é uma bênção
Tira-nos de um mundo de vãos desejos, lutas estéreis
Para a Paz e Pureza do Nada!"
Processa-se atualmente uma "americanização da morte". Consiste na maquiagem do morto de tal modo que os familiares apenas se dão conta que a pessoa morreu. É a tecnologia a serviço do ocultamento da morte, desde a casa até o cemitério, que se transformou em "Parque da Colina". Instituiu-se um curso de engenharia mortuária para preparar profissionais a fim de produzir nova coreografia mortuária. A morte desaparece do horizonte sensível para que se afaste também das mentes e corações.
3. A moeda da morte
A vida biológica
A morte é a moeda com que se pagam muitas realidades. A primeira delas é a vida. J. Monod formulou lapidarmente: "o preço da vida é a morte". A vida é cara. Custa-lhe o preço da morte.
Enquanto o processo evolutivo esteve ligado ao mineral não havia morte. As pedras jazem no silêncio da inconsciência e não conhecem morte. No momento em que surge a vida procriativa, a morte se introduz. Sem ela, a vida se multiplicaria ao infinito e não haveria espaço para albergá-la na totalidade dos viventes. Exigência intrínseca da vida que a morte lhe cerceie o impulso infinito de sempre existir. A morte acompanha a vida como a sombra a luz.
Uma das hipóteses é que o big bang (a grande explosão) terminará no big crunch (o grande esmigalhamento). Semelhantemente "a composição da vida" termina na "decomposição da morte". Numa palavra, para que haja vida, precisa existir morte.
A vida existencial
Sem a morte, a vida existencialmente se torna insuportável. Basta lembrar-nos da fábula da ilha da imortalidade. Os habitantes de uma ilha pediram aos deuses o dom da imortalidade. Eles concederam-lhos. Daí em diante a vida dos habitantes foi-se tornando cada dia mais insuportável. Cada um pode imaginar as cenas grotescas de uma ilha em que ninguém morresse, a que loucuras as pessoas se entregariam. Então, em dado momento, já não suportando os desvarios insanos, voltam aos deuses e rogam que lhes devolvam a morte. Em poucas palavras, para que a vida do outro seja possível, deve-se morrer.
O amor
Sem morte, não há amor. A imortalidade na história tornaria a história irrelevante. O fascínio lhe vem da mortalidade, do risco, do uma-vez-só das experiências, da irreversibilidade do tempo, do limite da experiência humana. Quando tudo isso não existe, perde-se o encanto.
No romance Todos os homens são mortais ( ), S. Beauvoir desenha um personagem, o conde Fosca, que era dotado de imortalidade. Ao longo de sua vida foi amando muitas mulheres que morriam e ele continuava vivo. Essa situação levou tanto a ele como as suas mulheres à convicção de que ele não tinha condições de amar ninguém, porque era imortal. Uma das mulheres lhe diz: "você dá sem contar suas riquezas, seu tempo, suas penas, mas tem tantos milhões de vida à sua frente que o que sacrifica não é nunca nada". Vem a pergunta do Conde: "- Então, nada do que faço, nada do que sou tem algum valor a seus olhos porque sou imortal? - É isso".
Diante de suas carícias, reage uma das amadas: "- Não compreende? Não posso suportar a carícia de mãos que nunca apodrecerão. Isso enche-me de vergonha". As frases se multiplicam, descrevendo o vazio de um amor que não arrisca a vida. Parece puro empréstimo provisório. Em vez de ser um amor pelo qual mutuamente os amantes se moldam, não passa de um acidente. Portanto, para que se ame, deve-se morrer e o outro também.
O mal
Está lá na origem da revelação bíblica (Gn 2, 17). O preço do mal praticado foi a morte. Muitos pensavam que se tratava de um mito no sentido depreciativo de cultura infantil. Estória para criança. Mas não. É a aventura do ser humano, de ontem como de hoje, que se arvora em lei absoluta sobre a vida dos outros até o crime de Caim. Terrível verdade e que cada dia na sociedade violenta de hoje se torna mais evidente.
O mal está na origem das mortes criminosas, irresponsáveis que se multiplicam. O universo da droga talvez seja a mais terrível parábola dessa verdade. Quem entra nela termina assaltando, assassinando em busca de dinheiro para sustentar um vício caro e sem retorno. E não raro colhe a morte violenta no final de compromissos que não consegue cumprir.
Gustavo Gutiérrez, nas pegadas de Frei Bartolomeu de las Casas, repete a expressão "morte antes de tempo". É a morte dos pobres, vítimas da injustiça social do sistema capitalista dominante. E mais recentemente define a pobreza como "proximidade da morte", não a biológica, mas da morte da exclusão social, do pecado social, do mal estrutural do sistema ( ).
A eternidade
Quanto nos custa a eternidade? A morte. Na linguagem de Guimarães Rosa, só por ela atingimos a Terceira Margem. A liturgia cristã do batismo acentua a relação entre morte e ressurreição.
S. Paulo, o teólogo de tal temática, explicita a necessidade da morte para a ressurreição. “Sabemos pois que nosso velho homem foi crucificado para que fosse destruído o corpo de pecado e já não servíssemos ao pecado. Com efeito, quem morre está livre do pecado. Se morremos com Cristo, cremos que também viveremos com ele. Pois sabemos que, ressuscitado dos mortos, Cristo já não morre, a morte já não tem poder sobre ele. Porque, morrendo, morreu para o pecado uma vez para sempre. Mas, vivendo, vive para Deus. Assim, pois, considerai-vos mortos para o pecado, porém vivos para Deus em Jesus Cristo” (Rm 6-11)
Portanto, para que nos salvemos, devemos morrer.
4. Atitudes diante da morte
Que atitudes tomar diante da morte? Vai depende de que morte se trate.
Morte física
Que fale primeiro a medicina. Cabe-lhe o dever ético de salvar a vida, de prolongá-la enquanto ela dispuser de recursos. Corre-se o risco de criar uma sensação de onipotência médica. Corrige-a o sentido realista de humildade que experimenta a morte como fracasso e limite.
Debate-se atualmente o problema ético da intervenção direta para eliminar a vida nos inícios (aborto) ou no final (eutanásia). Questão com graves implicações que nem sempre é bem conduzida. Interferem interesses ideológicos de gênero, jogos econômicos da indústria farmacêutica, riscos de clínicas clandestinas, conflitos de direito à vida, postura de direções de hospitais. Não cabe aqui entrar pelos meandros dessa questão que escapa do alcance da presente reflexão.
Até recentemente em várias sociedades e em setores religiosos, inclusive da Igreja católica, prevalecia a posição da eticidade da pena de morte aplicada a criminosos no final de um processo judicial. Cresce, no entanto, a opinião de que ela contradiz o direito fundamental à vida.
Abre-se novo segmento de reflexão sobre o direito à vida, já não somente de seres humanos, mas de animais e de toda natureza. Aumenta a grita contra a destruição do ecossistema.
Morte existencial
A concisão poética de Vitor Hugo une a vida com a morte por meio do grito. Na vida, ele soa na entrada. Na morte, na saída. Mas sempre grito.
On entre, on crie
C´est la vie
On crie, on sort
C´est la mort (Vitor Hugo)( ).
A morte é mistério. Basta experimentá-la em uma única pessoa. Nela percebemos que nos deparamos com algo maior que nós. Ela não é um problema que se resolve, nem um enigma que se decifra, mas um mistério em que se mergulha. Quanto mais nos aprofundamos nela, mais misteriosa permanece.
A morte faz parte das coisas que nos cercam. O médico a constata, as estatísticas as numeram, os jornais a noticiam. Um fato como qualquer outro que, em sua rotina e número, só afeta as pessoas em determinadas circunstâncias. Enquanto ela ceifa a vida dos outros, conduzimos a nossa imperturbávelmente.
E quando a morte se aproxima de nós? Sofremo-la na passividade de destino inexorável. Dói morrer, dizia uma médica diante do pequeno Emerson que agonizava. Pesa sobre nós quase a modo de instinto. Não cai sob o espaço da liberdade pessoal. É o animal que morre em nós. K. Rahner ironicamente refere-se a essa atitude como se não passássemos de uma térmita que não pensa sobre si, sobre o próprio mistério. Quantos se abeiram dessa margem última em tal inconsciência humana!
Assume-se a morte como ato da liberdade diante do mistério absoluto. Platão imortalizou a morte estóica na figura de Sócrates. Caminha lúcido para aquele momento.
Uma filosofia personalista a entende como momento supremo de liberdade, de amor, de responsabilidade e de humildade. Pertence à pessoa, centro decisório, assumir a morte como entrega de si. A pessoa orienta a natureza, enquanto contextura ontológica anterior à decisão livre, destinada por sua condição biológica à morte, dando significado ao ato de morrer. A pessoa apossa-se da natureza, resistente à morte, transformando-a em ato de aceitação livre. O homem, como ser para a morte, na linguagem heideggeriana, experimenta a morte presente em experiências existenciais, conferindo peso, seriedade, gravidade à vida.
Numa leitura cristã, a morte não perde o caráter de dramaticidade existencial. Ilumina-se a partir de Deus, o mistério maior, primeira e última palavra sobre o ser humano. Situa o ser humano diante do Futuro absoluto de modo que a vida perde o caráter de provisoriedade para penetrar na eternidade. Alguns teólogos, entre eles L. Boff, considerando a distância enorme entre a precariedade das decisões humanas ao longo da história e a gravidade do passo da morte, julgam que é dado ao ser humano lucidez única no instante do limiar entre esta vida e a que se eterniza. É-lhe facultada decisão privilegiada em que acontece a realização plena da liberdade para o bem ou a frustração radical, firmando-se no mal. Nesta hora joga-se o destino definitivo do ser humano. A morte é o grande momento da verdade vislumbrada e assumida na positividade ou negatividade da decisão final.
Dimensão social
A morte escapa da exclusividade das decisões pessoais. É um fato e dado social. Morre-se dentro de uma cultura. O romancista alemão Thomas Mann trabalhou a cena da morte de gerações diferentes de uma família para descrever “as entranhas morais e espirituais da burguesia hanséatica, revolvendo o drama de classe decadente e em processo de melancólica decomposição” ( ). A tecnologia, o espetáculo, o ocultamento, a comercialização e a injustiça patenteiam a concepção social atual de morte.
Os avanços tecnológicos da medicina têm transformado a cultura da morte. Se comparamos as mortes em família de gerações anteriores com as atuais, cercadas da parafernália da UTI, damo-nos conta da mudança de significado social. A morte é administrada pela tecnologia nos hospitais e banalizada pelos noticiários. Encurtou-se-lhe o campo de humanidade.
A morte saiu do ambiente familiar e se tornou objeto de espetáculo de filmes, cenas televisivas e noticiários. O mundo do espetáculo tem regras próprias e a morte é submetida a elas. Quanto mais pública for a pessoa que morre, tanto mais espaço midiático ocupa. Basta recordar os exemplo de Lady Dy, Trancredo Neve, Airton Senna, os Mamonas Assassinas, João Paulo II e outros personagens midiáticos. Em outros casos, é a forma da morte que provoca a imprensa: acidentes, crimes monstruosos, etc.
Ao lado da espetacularização da morte, processa-se paradoxalmente seu ocultamento. A primeira acontece com personagens midiáticos e com mortes chocantes. A segunda atinge a morte ordinária, nas famílias, perto de cada um de nós. À primeira se dá a maior publicidade e a segunda é cercada com o silêncio para não perturbar a rotina da vida.
A morte é tragada pelo báratro capitalista da sociedade. Não escapa da comercialização. Torna-se objeto de lucro, ora honesto, ora explorando a fraqueza da família enlutada
Mais iníqua ainda é a morte injusta do pobre. Negam-se-lhe condições de vida sadia. Abrevia-se-lhe a existência por falta de recursos básicos. Numa palavra, a morte é o retrato da cultura e da sociedade.
Expressão do amor
A teologia tem trabalhado a relação entre tempo e eternidade. E a partir daí interpreta a morte e o amor. Na visão tradicional, a eternidade vem depois do tempo. A morte é o último ato do tempo. Em outra compreensão, a eternidade atravessa o tempo. Torna-se-lhe uma qualidade. Vive-se no tempo a dimensão de eternidade que se plenificará depois da morte, mas já presente antes dela. O amor lança a ponte entre a morte e a eternidade. Já antes da morte se vence a morte pelo amor.
A natureza do amor se refere à eternidade, embora vivido na história. Ele faz, quer, é eternidade ( ). Bento XVI, na encíclica Deus caritas est comenta: “o amor promete infinito, eternidade — uma realidade maior e totalmente diferente do dia-a-dia da nossa existência”, “o amor visa à eternidade”.
Ele é fruto da liberdade, que é a faculdade de o ser humano situar-se em face do Deus da liberdade. A liberdade que ama é a capacidade que se tem de realizar-se a si mesmo, de uma vez por todas; "é a capacidade que brota da própria essência e segundo a qual aquilo que se faz livremente define o sujeito enquanto tal, de um modo definitivo” ( ). Supera-se a morte, ao mergulhar para dentro da eternidade. Assim o amor nos assinala definitiva e eternamente. O amor é, pois, escatológico, pois já realiza a eternidade, embora ainda não na forma de superação de toda morte e limite humano.
Entre o pecado e a graça
A morte é fruto do pecado e momento de graça. Naquilo que ela tem de absurdo, de incerteza radical, de angústia existencial participa do pecado. Ele tisnou-nos a limpidez e transparência da passagem certa para a vida definitiva. A morte/pecado anula os sinais parciais e históricos de sentido, mergulhando-nos no grande absurdo do nada. A graça inverte o processo. Relê os absurdos da história, inclusive o da morte, à luz do Sentido maior e radical do mistério de Deus.
O modelo sublime de morte/graça chama-se martírio. Paul Claudel descreve poeticamente a morte de Joana d´Arc. Ao ser envolvida pelas chamas, ela exclama: "Esta grande chama, esta grande chama horrível, é isto que vai ser meu vestido de núpcias?" E, diante de Joana acorrentada, vozes do céu repetem: "Joana! Joana! Joana! Filha de Deus! Vem! Vem! Vem!" Ao aludir às correntes que a prendem, a voz do céu retruca: " Há a alegria que é mais forte! Há o amor, que é mais forte! Há Deus, que é mais forte!" E ela morre, ouvindo vozes do céu, dizendo: "Ninguém tem maior amor que o que dá a vida por aqueles que ama "( ).
A morte significa mudança radical de modo de existir, desligando-se da forma corpórea ligada a tempo e espaço, para adquirir situação pancósmica, pancrônica. Relacionamo-nos para além do corpo biológico temporal.
A morte participa do duplo momento da kénosis e da doxa. Enquanto kenosis manifesta a humilhação, a fraqueza do corpo terrestre. Como doxa, revela a entrada na vida de Deus. Assim S. João viu a morte de Jesus. Mesmo na extrema humilhação da cruz - kénosis -, João põe na boca de Jesus as palavras de glorificação - doxa. "Quando eu for elevado da terra [crucificado, kenosis] atrairei a mim todos os homens [glorificado, doxa]" (Jo 12, 32). Em outro lugar, tinha dito: "Quando tiverdes elevado o Filho do homem, conhecereis que ´Eu sou`" (Jo 8, 28). De novo aparece o jogo de kenosis e doxa, ao aludir à morte de cruz (elevado) e ao reconhecimento de sua divindade. "Eu sou", em hebraico, soa Javé.
A morte levanta, em última instância, a pergunta de Kant: "que me é permitido esperar?". A resposta, na visão cristã, é a ressurreição, lugar da esperança.
Caminho para morte: diante de seu anúncio fatal
Elisabeth Kübler-Ross acompanhou centenas de pessoas nas experiências terminais ( ). A partir delas, elaborou a fenomenologia do caminhar para a morte, desde o momento em que alguém fica sabendo que tem doença mortal até a aceitação da morte.
Num primeiro momento, a pessoa nega a evidência do fato e isola-se. “Eu não, não pode ser verdade!” O enfermo, na arguta análise do P. Ávila, é o primeiro a suspeitar e o último a acreditar na verdade de seu estado grave. Busca algum médico que negue a evidência dos fatos. Corre atrás do milagre.
Segue-se uma atitude de raiva. "É verdade, sou eu! por que eu? por que não podia ser outro"? Somam-se revolta, inveja, ressentimento. Projeta a raiva sobre outras coisas, pessoas. Torna-se difícil lidar com o paciente nesta fase. "Pois é, é comigo, não foi engano. Por que eu? Não esqueçam que estou vivo! Vocês podem ouvir minha voz, ainda não estou morto! Não me venha com esta história de dizer que é a vontade de Deus sobre mim. Detesto quando alguém me diz isto".
Sobrevem a atitude da barganha. "Dêem-me uma chance ainda? Quem sabe que sendo bonzinho consigo viver mais, curar-me?" Há casos em que a mãe doente na iminência do casamento de uma filha tem aparente cura. Tentativa de adiamento da morte. Faz promessas a Deus pedindo cura ou prolongação da vida;
Prossegue o caminho com a depressão. "De fato sou eu: que maçada! Não há jeito!" É o sentimento de grande perda, inutilidade, impotência, desalento. Soma-se a idéia de fracasso: perdas econômicas, de emprego, de atividade e em breve perda das pessoas amadas. “Não me deram nenhuma esperança. E tudo o que eu posso fazer é esperar pelo amargo fim..."
E o desfecho se dá com a aceitação. "Enfim, eu! Bendito seja Deus! Deus deu, Deus tirou, seja o nome de Deus bendito!" (Jó 1, 21). Certa doente confidenciou: "consegui o milagre: aceitei morrer! Creio que o milagre é este: estou pronta, e agora não tenho mais medo". "Louvado seja, meu Senhor, pela irmã morte corporal da qual nenhum homem vivo pode escapar".
É um itinerário aproximativo. Nem todos o percorrem com as mesmas etapas, na ordem descrita e chegam ao desenlace feliz da aceitação. Mas como modelo didático permite entender a agitação interior de quem se acerca da morte.
CONCLUSÃO
A vida ou a morte só se entendem uma em relação à outra. Preferimos inverter a afirmação de J. Monod. Por ser materialista e sem perspectiva de transcendência, o preço da vida é a morte. Para quem tem horizonte para além da morte, o preço da morte é a vida. Na biologia, paga-se com moeda de morte o surgir da vida. Na teologia cristã, Deus paga com vida o preço da morte do Filho Jesus e nela de todos nós. Fica no diálogo interdisciplinar essa última palavra da teologia. Mais que uma afirmação é uma pergunta. É aliás a pergunta humana fundamental e radical, que, numa paráfrase da de Kant, soaria: que nos é permitido esperar com a trágica notícia da morte?
Bibliografia
1. J. B. Libanio – M Cl. L. Bingemer, Escatologia cristã, Petrópolis: Vozes, 1994, pp. 146-177.
2. K. Rahner, Sentido teológico de la muerte, Barcelona: Herder, 1965.
3. S. de Beauvoir. Todos os homens são mortais. Rio: Nova Fronteira, 1983.
4. E. Kübler-Ross, Sobre a morte e o morrer: o que os doentes terminais tem para ensinar a médicos, enfermeiras, religiosos e aos seus próprios parentes, 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1991.
5. L. Boff, Vida para além da morte: o futuro, a festa e a contestação do presente, Petrópolis: Vozes, 1973, pp. 34-54.
6. R. A. Moody Jr., Vida depois da vida: investigação de um fenômeno: a sobrevivência a morte física, Lisboa: Caravela, 1988,
7. Ph. Ariès, Sobre a história da morte no Ocidente desde a Idade Média. Lisboa: Teorema, 1975. 2. ed..
8. Ph. Ariès: O homem diante da morte. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1981.
J. B. Libanio, SJ
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