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quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Saramago, Rubem e a festa na Terra Manter a calma

Mauro Santayana


De todos os excepcionais textos de Rubem Braga, cuja leveza embalava as coisas sérias, o mais instigante é o que descreve uma grande festa na Terra, para a qual todos os seres humanos haviam sido convidados. Como era de seu hábito e de seu talento, Rubem excitava a imaginação e as reflexões do leitor: seria aquela a primeira ou a última festa na Terra? Era festa admirável, em que todos se divertiam, felizes; tratavam-se com afeto de irmãos e os casais de enamorados não escondiam sua ternura especial.

Não nos damos conta de que fomos convidados para a grande festa da vida, a grande festa na Terra. Qualquer manual de etiqueta registra o que fazer nesses encontros. Moderar na bebida e na comida. Tratar bem os presentes, ser amável ao máximo, ouvir mais do que falar, fugir do pedantismo, cuidar de coisas graves com os interlocutores certos, e das banalidades usuais com os outros.

A visita de Saramago ao Brasil e suas reflexões sobre a seca atualidade conduzem a Rubem, também pelo fato de ele ter sido dos melhores escritores em nossa língua comum. Saramago acerta, quando diz que não há direitos humanos. Não os há: quando são reconhecidos, não são respeitados. Ao dizer que não é pessimista, mas que o mundo ficou péssimo, o autor volta às verdades que, de serem simples, são esquecidas. Ninguém se preocupa em ser bom. "Bondade" escapou do vocabulário, assim como até mesmo a palavra "corrupção" se corrompeu pela banalidade, perdendo seu sentido grave, para designar comportamento assimilável pela tolerância geral. E de vocábulo em vocábulo corroídos, desfaz-se a linguagem em nova babel. Assim, os banqueiros de Wall Street são "ousados" quando roubam, e os empresários, "prudentes", quando demitem em massa. Novo idioma foi criado, a partir da mutilação semântica, a fim de esconder a verdade.

O sistema econômico moderno criou novo tipo de corporativismo, bem diferente daquelas associações profissionais da Idade Média, que zelavam pela preparação dos aprendizes , pela técnica dos artesãos e pela solidariedade para com os necessitados. O novo corporativismo – que serviu de cimento ao fascismo – se destaca pelo egoísmo dos grupos. As pessoas não se aproximam mais pela vizinhança e pela amizade ocasional mas, sim, pelo pobre interesse de sua pequena grei profissional. No mês passado, um homem de 47 anos, pai de família, desempregado e doente, subiu ao último andar de um posto de perícias médicas em São Paulo, ameaçando matar-se, se não recebesse o benefício a que, em seu entender, tinha direito. O fato em si é vulgar, quase rotineiro, perdeu o interesse dos grandes jornais. Mas a Associação Nacional dos Peritos Médicos, em nota divulgada por sua assessoria de imprensa, acusou-o de atrasar o início do atendimento ao público por mais de uma hora. Há algum tempo, esses peritos médicos reivindicavam aumento com o argumento de que haviam economizado bom dinheiro à Previdência, com seus laudos. É certo – e já foram identificadas algumas – que há quadrilhas montadas para fraudar a Previdência, mas um trabalhador, isolado, que reclama, não pode ser visto como criminoso. Todas as corporações – entre elas, a dos jornalistas – aferram-se a seus privilégios, muitos obtidos mediante pressão política. E como todo privilégio traz, como contrapartida, alguma injustiça, o sentimento de solidariedade da espécie se esfaz, sobretudo nos grandes centros urbanos. Há algumas décadas os pobres tinham direito à solidariedade.

Não são poucos os pensadores – e o teólogo Leonardo Boff tem tratado algumas vezes do tema – que nos indicam como a crise atual poderá nos despertar da letargia. Teremos que reconstruir a sociedade dos homens a partir da constatação de que somos todos rigorosamente iguais.

Os chilenos fizeram bem em desdenhar a fanfarronada do general Donayre, comandante-geral do Exército do Peru, que, em festa descontraída, ameaçou matar os chilenos que entrassem no Peru. Entre 1879 e 1883 houve guerra entre o Chile, o Peru e a Bolívia – estimulada por interesses europeus no salitre e no guano do Pacífico – que os chilenos ganharam, depois de ocupar Lima (em 1881). Os peruanos perderam a província de Tarapacá e grande parte do deserto de Atacama e, os bolivianos, a região de Antofagasta. Recentemente, o governo peruano levou a questão ao Tribunal de Haia. Nada pior do que reabrir feridas cicatrizadas, quando o continente busca a integração.

http://ee.jornaldobrasil.com.br/reader/clipatexto.asp?pg=jornaldobrasil_117599/99682 27/11/2008

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