1. Unidade e diversidade em Deus
Na raiz de todo monoteísmo há a afirmação inegociável: Há um único Deus. Nós cristãos somos monoteístas. Mas distinguimo-nos dos judeus e dos muçulmanos porque essa unidade absoluta de Deus é tão rica, tão irradiante, tão expansiva, que ela é apropriada por três pessoas: Pai, Filho e Espírito Santo.
Mais. Confessamos que no princípio de tudo está essa comunhão trinitária, esse único Deus tripessoal, que não existe na solidão do Um mas no entrelaçamento dos Três. Quando afirmamos que Deus é amor, queremos revelar precisamente a natureza trinitária de Deus. O Amor é a realidade que une os distintos, sem que eles deixam de ser distintos, mas os vincula entre si a uma unidade cada vez maior conforme a grandeza do amor. Nas criaturas, nunca a diversidade de pessoas chega à unidade da natureza singular. Comungamos numa mesma natureza de espécie. Em Deus, o amor é tão sublime, infinito que os Três divinos, as Três pessoas são uma só natureza, uma só essência.
2. Os diferentes nomes da Primeira Pessoa da Trindade
As pessoas em Deus são chamadas de modos diferentes. O nome mais conhecido da Primeira Pessoa é Deus Pai porque gera o Filho na eternidade. Ele tem outros nomes, como de “soprador” do Espírito. Em relação a si mesmo, a Primeira Pessoa é nomeada "princípio sem princípio", ingênito. Como pessoa divina é fonte de tudo o que existe. Mas ele é mais. É fonte no próprio interior da Trindade. Portanto, fonte-fonte, fonte-princípio e princípio-fonte. Não na linha do tempo, da causa, porque no interior da Trindade não há tempo, não há causalidade. Esse é o nosso mundo de criaturas. Entretanto, no seu seio divino há uma ordem eterna, em que a Primeira Pessoa é sempre a fonte inicial da geração eterna do Verbo e da " espiração" eterna do Espírito.
3. Deus, Primeira Pessoa, é, existe, constitui-se eternamente pelas relações
"Em Deus tudo é Um, onde não o impede a oposição da relação", é um dos famosos axiomas teológicos sobre a Trindade. Em palavras mais simples, todas as ações de Deus - a criação, a redenção, a santificação de nossa alma, a ressurreição dos mortos, a transformação final do mundo, etc. – são obras da Trindade, das Três Pessoas, posto cada uma tenha seu modo próprio de atuar. Elas, no entanto, se distinguem enquanto mantém entre si relação original, única. Para exprimir essas relações, antes que a razão teológica entrasse com seu trator teórico, a piedade, a liturgia, a fé mais simples, a experiência religiosa expressaram-se em imagens que revelam essa relação. A primeira imagem é a paternidade com seu correlato da filiação. A segunda é a da “espiração”, do sopro.
Nessa dupla imagem, a Primeira Pessoa da Trindade ocupa o lugar do Pai e do Soprador. Ele é Pai, porque gera o Filho. Se não houvesse Filho, nunca seria Pai. Portanto, constitui-se na e pela relação. É Soprador porque sopra o Espírito Santo juntamente com o Filho. Se não houvesse Espírito Santo, também Ele e o Filho nunca seriam o Princípio soprante do Espírito.
Só Ele é o Pai, porque só Ele gera o Filho. Nisso se distingue do Filho e do Espírito Santo. Como Soprador se distingue do Espírito, Aquele que foi soprado, mas não do Filho, pois ambos são um Único Soprador do Espírito. Os Padres gregos preferem também aí ver uma distinção. Pois, o Pai é a fonte do sopro por meio do Filho até o Espírito.Os latinos imaginam um único Sopro saindo de ambos.
A imagem da paternidade e do sopro participa tanto da riqueza quanto da pobreza de toda linguagem humana quando se refere a Deus. No entanto, não são puras imagens. Traduzem uma realidade muito além de nossa capacidade. Lançam-nos uma ponte em direção à terceira margem divina.
Tal reflexão pode ajudar-nos na fé? Não é pura fantasia ou especulação estéril? Não. Se nos pomos a pensar, percebemos que essa distinção em Deus nos permite vivências espirituais diferenciadas de cada pessoa trinitária, mas nunca separadamente. Em cada ação são sempre os Três Divinos atuando, mas cada um com modo próprio.
4. O primeiro acesso a Deus Pai
A reflexão, que nos norteou nessa descoberta de Deus, Primeira Pessoa da Trindade, como Pai, como Soprador, não brotou do próprio seio interior de Deus. Quem somos nós para ouvir e sentir a Palavra e o Sopro eternos no coração mesmo da Trindade? Lá chegamos depois de tatear pelas revelações que Deus Trino nos foi fazendo ao longo da história. Foi Jesus Cristo que, na sua pretensão de Filho eterno do Pai, nos abriu o acesso a Deus como Pai. E o mesmo Cristo nos falou do Espírito e então chegamos a Deus também como aquele “Soprador” divino.
A fé no Único Deus nos impediu de cair na fácil tentação de confessar três deuses. Uma família de Três deuses poderia ser bela mensagem ao mundo pagão que conhecia tantos deuses. No entanto, a fé cristã resistiu firmemente ao triteísmo. Uma outra resposta fácil seria manter com o judaísmo o monoteísmo rígido e hierarquizar as outras duas pessoas divinas. Deus Pai seria o Deus maior, Jesus e o Espírito ser-lhe-iam subordinados. Mais uma vez a fé cristã teimou em manter a igualdade e a diferença. Dessa dupla certeza nasceu, portanto, toda a reflexão trinitária, que se desenvolveu ao longo sobretudo dos cinco primeiros séculos.
A figura de Santo Irineu (+202) aparece bem nesses inícios marcando o caminho do conhecimento de Deus Pai no interior desse movimento de manifestação histórica. "Eis a regra de nossa fé, o fundamento do edifício e o que confere solidez à nossa conduta: Deus Pai incriado, que não está contido, invisível, um só Deus e Criador do universo; este é o primeiro artigo de nossa fé. E como segundo artigo: O Verbo de Deus, o Cristo Jesus Senhor nosso" e seguem outras verdades sobre a humanidade histórica de Cristo. Acrescenta em seguida: "O Espírito Santo pelo qual os profetas profetizaram e os Pais aprenderam o que concerne a Deus", concluindo com as ações atribuídas ao Espírito. Esse núcleo da fé cristã foi desenvolvendo-se com ulteriores reflexões.
Foram forjando-se palavras para designar o Um e o Três em Deus. O Um é o que as Três Pessoas têm em comum. Chamou-se de essência, substância, natureza e todos os atributos divinos. O Três é o que cada uma tem de próprio. Aí se usaram a palavra Pessoa, Subsistente e os nomes para designar cada pessoa: Pai, Filho e Espírito Santo.
5. Deus Pai é a Primeira Pessoa da Trindade
Em todo catecismo se ensina essa verdade. Por aí se começa. Evidentemente essa frase tão curta encerra augusto mistério que nunca nossa inteligência vai conseguir captá-lo na sua riqueza. No entanto, entre a completa intelecção, impossível no caso de Deus, e a absoluta equivocidade de nada dizer de Deus, senão um sopro de voz, há um conhecimento sempre aberto a novas intelecções. Ora afirmando algo positivo, ora negando falsas compreensões, ora empurrando assintoticamente uma compreensão que será nosso gáudio, principiado aqui na fé, por toda a eternidade a dentro.
Deus é Pessoa, mas não como nós. Quando falamos pessoa, entendemos uma liberdade, uma consciência, uma vontade próprias. Deus Pai não tem nenhuma liberdade, consciência, vontade próprias no sentido de distinta das do Filho e do Espírito. É a mesma. Mas é pessoa no sentido que possui essa liberdade, essa consciência e todos os atributos divinos comuns às outras duas pessoas, de "maneira própria". Ele as possui como fonte primordial, princípio originante, "princípio sem princípio", ingênito, fonte de todo sopro. Aí está originalidade de sua Pessoa.
Ao chamar a Deus Pai de Pessoa, queremos reconhecer que ele é uma realidade distinta do Filho e do Espírito. É um Divino ao lado de dois outros Divinos. Não se confunde com eles, não os absorve, nem se deixa esmaecer pela realidade dos outros dois Divinos. Afirmar a pessoa de Deus é confessar que nenhuma delas pode ser esquecida, deixada de lado, como se bastasse somente falar de um Deus-essência. Obriga-nos a voltar-nos a cada uma das Pessoas, distintamente. Os Padres gregos, ao falarem da distinção das pessoas, querem dizer que cada uma é um subsistente próprio. Não são invenção de nossa fantasia, nem projeção de arquétipos humanos ancestrais.
Nós, latinos, entendemos mais a relação entre elas. Ambas verdades devem ser mantidas. Não há pessoa divina sem distinção, mas também só há único Deus se as três pessoas mantiverem uma relação tão profunda entre si que são um só amor, uma só bondade, uma só misericórdia, etc. Cada uma das pessoas tem sua subjetividade, sua autoconsciência própria, em eterna abertura às outras duas.
6. O Pai nos três caminhos da Trindade
O dado simples de nossa fé de que há um só Deus em três pessoas realmente distintas, como tantas vezes repetimos no catecismo, permite três itinerários. Cada um tem sua beleza. Podemos partir da unidade da natureza divina. Afirmamos a existência de um só Deus. As Pessoas divinas ficam na sombra. É a experiência riquíssima que fazemos de que a idolatria, os muitos deuses, o paganismo com sua floresta divina, não dão conta dessa realidade primeira e última. Há o UM, com letra maiúscula. É o Mistério supremo, ainda não nomeado cristãmente, mas presente no judaísmo, no islamismo, em tantas outras experiências religiosas.
A imensa maioria dos que crêem em Deus permanecem nesse momento. Dessa unidade última de Deus vivem, para ela tendem. O pessoal dessa unidade ainda não recebeu a face de Pai, nem de Filho, nem de Espírito. É a consciência, a liberdade, a espiritualidade infinitas da natureza divina, comum às três pessoas.
Mesmo sem conhecer as pessoas divinas da Trindade cristã, muitos experimentam que esse mistério primeiro e maior é irradiante, transborda de si. Não sabem ainda que tal abundância se consusbstancia em três pessoas. Mas vivem, sem dúvida, essa força divina tripessoal no anonimato de uma revelação não conhecida.
Outros, já alimentados pela fé cristã, sabem que esse primeiro Um é o Pai. Dirigem-se a Ele nesse primeiro momento. Creio num Deus Um Pai. As três pessoas são divinas, mas o Pai é Deus por antonomásia. Quando a Escritura ou a liturgia fala de Deus, sem mais, refere-se quase sempre a Deus Pai. Vale a pena conferir lendo os textos e rezando as orações. Nele começa todo culto, toda oração. Nele termina toda adoração, toda veneração. Dele vem toda bênção, toda graça, para ele volta e sobe toda nossa gratidão. Essa experiência filial em relação a Deus Pai tem a beleza e pureza das águas cristalinas da fonte primordial de nossa fé. Tudo começa e termina em Deus Pai.
Enfim, podemos partir da experiência de um Deus comunhão. "No princípio está a comunhão dos Três e não a solidão do Um" (L. Boff). Antes que os nomes divinos aflorem aos nossos lábios, antes que vivamos a experiência da Unidade radical de Deus, somos envolvidos pela comunhão, pela comunicação interna de Deus que nos alcança. Experimentamos o Pai todo no Filho e no Espírito Santo numa comunhão maravilhosa de amor. Entendemos então o que Jesus uma vez disse: "Quem me viu, viu o Pai" (Jo 14, 9). E poderia ter dito também, "quem me viu, viu o Espírito Santo". Enfim, quem experimenta uma das pessoas, experimenta a comunhão que as une entre si. Noutras palavras, percebemos em primeiro lugar a dimensão de Amor-comunhão entre as Três pessoas divinas. Somos remetidos assim a uma Comunidade primigênia e chamados a viver na terra a dimensão comunitária como realização de nossa dimensão ontológica de ser-comunhão.
7. Deus não é nem masculino, nem feminino, nem neutro, mas Trindade
Deus não é pessoa como nós. É pessoa num sentido sublime. Muito menos têm gênero. Quando o chamamos de Pai, de "Ele" na forma masculina, não queremos, de maneira alguma, atribuir-Lhe uma dimensão de gênero. São arquétipos culturais que influenciaram nessa masculinização dos termos aplicados a Deus, por causa da imagem que fazemos tanto de nós mesmos quanto de Deus. Os antigos só podiam conceber a Deus numa linha de poder, de força, de senhorio. E, por sua vez, o homem encarnava tais estereótipos na sociedade patriarcal dominante no mundo das grandes religiões monoteístas. À mulher se reservavam funções e qualidades de submissão, de cuidados menores. O mundo celeste reproduzia o mundo terrestre do império masculino.
Estamos diante de um antropomorfismo extremamente limitado que teve, infelizmente, muitas conseqüências negativas para a piedade e teologia. Não é solução cair em outro antropomorfismo feminista. Cabe compreender tanto o masculino quanto o feminino como expressões culturais. Mais: importa corrigir as suas deturpações. Hoje o homem e a mulher são entendidos como expressões originais de totalidade do ser humano e não partes nem mesmo complementares. Pois, quer o homem quer a mulher possuem a dimensão masculina e feminina, embora não mesma proporção. E Deus é a fonte e criador dessa totalidade. Por isso, nele existem em sumo grau as qualidades que definem o masculino e o feminino, sem que ele seja algum dos dois gêneros. A tematização do masculino e do feminino são processos culturais, posto tenham fundamento na realidade biológica. Em outras culturas, a explicitação dessas dimensões tem sido e é diferente.
Podemos evidentemente, num momento transitório, para corrigir nossa linguagem sexista e os efeitos colaterais de seu uso, insistir em chamar a Deus, ora de ele, ora de ela; ou invocá-lo, como o Papa João Paulo I o fez: Deus Pai e Mãe! Mais interessante ainda é valorizar na própria revelação os traços masculinos e femininos aplicados a Deus.
Já que Deus transcende os gêneros e realiza, em suprema perfeição, aquilo que o masculino e feminino humanos são, nada impede que, no nível de nossa devoção, atendamos mais, ora às qualidades masculinas, ora às femininas em Deus. Nunca, porém, podemos perder a clara consciência do alcance e do limite de nossos conceitos. Destarte, quando valorizamos o lado masculino de Deus, acentuamos o seu senhorio, sua onipotência criadora, suas gestas libertadoras na história. Por sua vez, quando nos apraz louvar o lado feminino de Deus Mãe, então cultuamo-Lhe as dimensões interiores da vida, o gesto delicado da criação, a animação, o consolo, o último aconchego, a ternura, a gratuidade do dom, a beleza, o repouso, o sossego, a dedicação, o secreto do mistério.
Em toda essa consideração de gênero, o mais importante talvez seja perguntar-se porque Deus quis criar os seres humanos sexuados. Poderia evidentemente ter sido outra a evolução da vida. O mundo material expandiu-se pelas leis físicas. O gênero surgiu com a vida mais complexa. A resposta pode ser encontrada na própria natureza de Deus. Deus é amor. O Amor é o princípio que organiza e sustenta todo o universo. Teilhard de Chardin formulou tão belamente o princípio da amorização que já se manifesta desde o entrelaçar-se das partículas subatômicas. Mas ele atua sobretudo quando a criação chegou ao grau mais perfeito – o ser humano. Então Deus o pensou masculino e feminino, para que assim aparecesse com mais clareza essa sua natureza de amor, reciprocidade, comunhão. Só o masculino ou só o feminino não gera a vida. Deus introduziu para o seu surgir o princípio da participação, da partilha, da comunicação. Podem os homens e mulheres perverter o ato de amor, gerador da vida, mas sua dinâmica interna toda ela fala de dom, de entrega, de aconchego, de reciprocidade. Deus escreveu na estrutura da vida a partilha, o dom mútuo, a entrega confiante, a espera amorosa. A dualidade sexual permite infinitas formas de amor e dessa maneira os seres humanos refletem a imagem de Deus. Nessa perspectiva, o sexo perde toda a mácula que triste tradição ascética lhe impingiu para recuperar a beleza primigênia do projeto de Deus. Com efeito, o masculino e o feminino, na sua dualidade, revelam mais uma faceta do Amor infinito de Deus. Na sua última realidade de verdadeiro Deus Pai e Mãe, Ele quis que tivéssemos pai e mãe para que surgíssemos para a vida.
Conclusão
No seio da Trindade, tudo é Amor. Não só porque a pessoa do Espírito Santo o torna substancial, mas também porque todo o Pai está no Filho e no Espírito Santo, como Três eternos amantes. O mesmo se pode dizer de cada pessoa que está toda na outra. Essa é a forma do amor divino. Ele se irradiou na criação, ao estabelecer-se como princípio organizador de tudo. E sobretudo na criação do feminino e do masculino de modo que a nova vida surgisse de sua fusão. E no panorama da existência, a dualidade do gênero, para além da geração da vida, vem criando, ao longo da história, infinitas possibilidades de expressão para que os seres humanos comecem também a realizar já na terra o seu último fim de ser eternamente amor com Deus amor.
J. B. Libanio, SJ
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