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quinta-feira, 11 de agosto de 2011

Cristianismo maduro e responsável






Um comentário num post a respeito do Diversidade Católica num blog amigo andou nos dando o que pensar. O autor do comentário em questão, James Figueiredo, defendia que todos os cristãos são inimigos dos gays, e justificava:


Todas (veja bem, TODAS) as religiões abraâmicas são nossas inimigas, e não entendo o que mais seus representantes precisam fazer pra enxergarmos isso (a última semana foi bastante elucidativa nesse ponto).

E, sinceramente, admirar gays que lutam pra conciliar sua homossexualidade com suas superstições religiosa? PUH-LEAZE.

Gays religiosos são como...sei lá, judeus nazistas. Deveríamos é nos esforçar pra libertá-los dessas prisões que só alimentam suas dúvidas e minam sua auto-estima.


Ficamos imensamente gratos ao James, pois suas palavras deram margem a uma reflexão acerca do significado do cristianismo para os gays (leia a resposta na íntegra aqui), que reproduzimos em parte a seguir:

(...) Essa resposta é importante porque você, James, não é o único a pensar assim, e te agradeço muito por ter exposto a sua opinião. (...) Gostaria de sublinhar alguns pontos importantes a respeito deste tema, que talvez às vezes não fiquem claros para todo mundo.

Primeiro, religião e espiritualidade são coisas distintas. É muito comum as pessoas se esquecerem disso. Religião tem a ver com sistemas mais ou menos institucionalizados de expressão de uma determinada crença, estruturados ao longo do tempo, da história e das transformações culturais de um determinado povo ou grupo social. Em parte, é uma forma de expressão da espiritualidade tanto de cada membro desse povo ou grupo quanto do grupo em seu conjunto, mas envolve muitos outros fatores de ordem social e cultural também.

Já espiritualidade tem a ver com a necessidade humana de transcendência, isto é, de atribuir um significado à sua existência, um sentido à vida, um propósito à sua presença aqui e agora. Trata-se do conjunto de respostas que cada um procura dar àquelas perguntas que nos fazemos desde crianças: de onde vim? Para onde vou? Por que estou aqui? Para que estou aqui? Qual o sentido de tudo isto? Cada um encontra suas próprias respostas distintas, mas em geral todos nós nos deparamos com essas perguntas, e não sossegamos enquanto não encontramos uma resposta – embora seja comum também as respostas irem mudando ao longo da vida, mas isso já é uma outra história... :-)

O que acontece é que nós do Diversidade Católica encontramos no credo cristão, e especificamente na forma católica, a maneira com a qual mais nos identificamos para expressar nossa espiritualidade. Isso significa que o que dá sentido às nossas vidas é a mensagem evangélica de amor e serviço ao próximo, à luz de um Deus que é Pai e ama a cada um de seus filhos de maneira irrestrita e sem condições. E mais: o fato central e específico da nossa crença é que Cristo foi Deus encarnado como homem. Um Deus que se faz humilde e serviço aos seus filhos amados; que por amor se reduz à forma humana, por amor prega uma doutrina revolucionária, desmascarando todas as hipocrisias dos poderosos e da elite religiosa de seu tempo, e por amor aceita ser morto por essas pessoas, a fim de levar às últimas conseqüências sua mensagem de amor, humildade e não-violência. E, por amor, vence a morte e ressuscita, deixando-nos uma mensagem de esperança de que, por pior que as coisas sejam, no fim, Ele a tudo supera. (Se quiser se aprofundar nesse tema, dê uma olhada em “A Cruz: suplício ou esperança?” e “No sofrimento, Deus luta pela vida e solidariza-se com aquele que sofre”)

Desculpe, James, esse breve resumo da nossa profissão-de-fé, mas ele é importante para explicar que a crença na encarnação de Deus na figura do Cristo tem uma conseqüência fundamental para os cristãos: o fato de que é no humano, e não em uma imagem de Deus, qualquer que seja ela, que encontramos a transcendência, isto é, o significado último da nossa existência. É no serviço ao Outro que encontramos sentido. O projeto cristão, em sua origem, não é um projeto religioso (veja “O Cristianismo: uma religião ou a saída da religião?”); não é sequer um projeto de fé. É, antes de tudo, um projeto ético. (A esse respeito, dê uma olhada em dois posts nossos desta semana, de um teólogo espanhol: “Deus não está na fé, mas na ética” e “Estamos procurando Deus nos lugares errados”).

Chego então ao segundo ponto que gostaria de sublinhar: você certamente conhece cristãos cujas palavras e atos não têm nada a ver com o que acabo de expor. Eu conheço muitos; talvez até sejam a maioria. Ocorre que, ao longo desses dois mil anos de história, à medida que a história do cristianismo se misturava à história da Igreja e esta, à história do poder no Ocidente – taí aquela distinção entre espiritualidade e religião, viu? – foi se consolidando uma imagem de Deus que de certo modo se distanciou da mensagem evangélica. Por influências culturais (a absorção da doutrina estóica nos primeiros cinco séculos de nossa era, por exemplo, trouxe uma visão do corpo e da sexualidade como algo impuro, quando isso não era em absoluto um elemento original do cristianismo) e históricas (a desintegração do Império Romano, por exemplo, que alçou a Igreja à posição de centro agregador da cultura e da estrutura social da Europa Ocidental na Alta Idade Média), consagrou-se a imagem de um Deus identificado com o poder – e, de roldão com esse poder, veio a imagem de um Deus que julga, que oprime, que impõe ao homem o que é certo ou errado. Ou seja, um Deus que é um monarca totalitário e autoritário, profundamente humano, e que tem a importante função social de justificar as humanas estruturas de poder de seu tempo. Justamente a imagem e função de Deus tão criticada por Cristo em seu tempo. E justamente a antítese, portanto, do cerne da mensagem evangélica.

A questão é que, com o advento da ciência, esta nos fez o favor de desvincular da religião a prerrogativa de todo o saber sobre o mundo e explicação da vida. O que é ótimo, porque embora essa função tenha tido sua importância num determinado momento histórico, hoje a ciência a cumpre muito melhor. E pode restar à religião concentrar-se na espiritualidade – e esta, por sua vez, naquilo que só ela faz: dar conta da necessidade humana de transcendência.

O problema é que ainda existe por aí aquela imagem de um Deus opressor etc. E essa imagem é cada vez menos satisfatória, tem cada vez menos a ver com os anseios do coração humano. Daí o êxodo que as religiões mais institucionalizadas, especialmente os cristianismos, vêm sofrendo: porque essa imagem de Deus simplesmente não serve mais. Ou melhor: para alguns, serve. Há quem queira um Deus assim. Há quem procure justamente um Deus que lhe diga o que fazer, que diga o que é certo e errado, simplesmente, e lhe dê a segurança de que, se a pessoa fizer o que é certo e não fizer o que é errado, vai ganhar um prêmio, nesta vida ou numa outra depois. Você certamente conhece pessoas assim. Eu conheço pencas: são os fundamentalistas.

É com base nessa visão dualista de “isso é certo” vs. “isso é errado” que os fundamentalistas atacam a nós, gays. Nós “somos” errados e pronto. É uma visão de mundo muito simples e cômoda, mas também profundamente opressiva e esmagadora. Considerar que uma relação humana – hétero, homo ou o que for – pode ser saudável ou não dependendo das escolhas dos envolvidos é muito mais complicado e difícil (mas também muito mais libertador) que simplesmente pensar que “hétero é certo” e “gay é errado”. Quer saber? Perdem muito mais eles do que nós.

Terceiro – e, pra mim, o mais importante (embora raramente as pessoas não-religiosas levem esse fator em consideração ao nos dirigirem críticas como as suas, James): assim como a orientação sexual, a pertença religiosa é um aspecto inerente à identidade de cada um; como tal, não se trata de uma escolha. Por fatores da história de cada um talvez tão inescrutáveis quanto os motivos que fazem com que alguém seja gay, o fato é que algumas pessoas são cristãs. Algumas, especificamente católicas. Nós somos católicos. E gays. E não há nada que possamos fazer a respeito. Muitos de nós já tentaram “deixar de ser” católicos. Alguns “deixaram de ser” gays, também. Não funcionou. E foi MUITO libertador quando esses puderam se dar o direito de ser gays, de ser católicos. De ser o que são, em suma. (Mais dicas de leitura: “Permanecer e transgredir” e “Ficar ou sair da Igreja?”)

Confesso, James, que me preocupa muito ler “deveríamos é nos esforçar pra libertá-los dessas prisões que só alimentam suas dúvidas e minam sua auto-estima”. Desculpe, mas isso me soa tão parecido com a lógica de “ser gay não é bom pra você, precisamos te ajudar a deixar de lado isso que te faz muito mal”! É a mesma lógica que produz as famigeradas terapias de reversão. Não seria mais profícuo um exercício de respeito e tolerância à diferença, mesmo quando a gente não consegue entender a diferença do outro?

Por fim, o quarto ponto que eu gostaria de salientar: Igreja nenhuma, instituição nenhuma é um corpo único, com uma só voz. Nisso, James, discordamos inteiramente... A Igreja não é o Magistério, o clero, mas todo o corpo dos fiéis, cada qual com sua voz – e é uma verdadeira multidão de vozes. Nem mesmo o Magistério em si tem uma voz única. A imprensa presta um verdadeiro desserviço quando anuncia "Vaticano diz que...", "Bispos dizem que...", como se essa entidade abstrata sem rosto tivesse existência própria. Alimentar essa imagem contribui apenas para a demonização desse Outro, que vira meu "inimigo".

Tome-se, por exemplo, a recente atitude da Igreja no Brasil em relação ao julgamento da união estável gay no STF: enquanto a CNBB se preocupava em mandar um advogado para falar contra a aprovação (ai, sou humana: intensos frêmitos de vergonha alheia), existe uma infinidade de cristãos, católicos ou não, clérigos ou não, que defendem os direitos civis gays. Veja os seguintes exemplos: “A Igreja de peito aberto para as minorias”; “As vozes da Igreja”; “Padre coordena grupo que lançou consultoria online para público LGBT”; “‘Não vamos fazer nenhuma cruzada’, diz bispo em SP sobre união gay”; “Os gays e a Bíblia”; “Os gays entram nas igrejas”; “A Igreja de portas abertas para as vítimas da homofobia”; "União Civil e Nossa Voz" “Católicos pela igualdade matrimonial”; “União estável homoafetiva, um direito conquistado”, entre muitos outros.

A mesma Igreja que tantas atrocidades perpetrou ao longo da História (e perpetra ainda, inegavelmente) em nome de “Deus” (entre aspas porque é aquele Deus opressor cuja imagem serve apenas à perpetuação de estruturas humanas de poder, sem nada a ver com o Deus da mensagem evangélica) é a mesma que produziu Dom Helder Camara, José Comblin, Zilda Arns, Josimo Tavares, Oscar Romero, Dorothy Stang, Frei Betto, Leonardo Boff; os agentes da pastoral da AIDS, da pastoral da terra – que vêm sendo silenciosamente martirizados no norte do país – e tantos outros que colocam o amor e o serviço ao próximo no centro e acima de suas próprias vidas.

Assim como a sexualidade ou qualquer outro aspecto da vida humana, também a espiritualidade pode ser vivida de formas mais ou menos saudáveis. O cristianismo praticado de maneira positiva, James, é menos uma questão de fé e mais uma questão de valores, de uma espiritualidade madura e de uma ética sólida, que tira o ser humano do egocentrismo e o coloca numa relação aberta e responsável com os irmãos.

O Diversidade Católica existe para isto: para delimitar um território – a identidade que é nossa por direito, porque somos o que somos, católicos E gays, e ninguém pode dizer o contrário; e para ajudar seus membros a viver e praticar um cristianismo maduro e responsável em sua relação com Deus e com os irmãos.

Mais uma vez, a quem chegou até aqui, me desculpem pela extensão da resposta, e obrigada pela paciência. (...)

Fiquem com a graça e a paz de Cristo.

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