O pensamento bíblico sempre foi de que o ser humano é uma unidade que jamais poderia ser dividida em dois princípios, chamados corpo e alma.
A partir do momento em que esta antropologia bíblica entra em contato com a cultura grega, constatamos um esforço específico de autores bíblicos para defender a sua concepção global do homem, contra o modelo dualista do helenismo.
Vê-se, em certos textos da “Sabedoria”, um dos exemplos típicos deste esforço:
“De fato, o destino do homem e o do animal são idênticos: do modo que morrem estes, morrem também aqueles. Uns e outros têm o mesmo sopro vital, sem que o homem tenha vantagem nenhuma sobre o animal, porque tudo é fugaz. Uns e outros vão para o mesmo lugar: vêm do pó e voltam para o pó” (Ecl 3, 19-20).
A intenção do autor bíblico não é negar uma vida depois da morte. O que ele quer é rejeitar de maneira clara a idéia da filosofia grega, conforme a qual a sobrevivência do ser humano, depois da morte, seria garantida pela própria natureza humana e sua alma imortal. Em vez disso, o Coélet insiste no fato de que o homem, por sua própria natureza, não pode contar com imortalidade. A vida dele após a morte só pode ser garantida porque Deus, que é um Deus da vida, não quer que este homem fique na morte.
Este exemplo, formulado numa época (séc. I a.C.) em que a teologia de Israel estava sob forte pressão de uma helenização forçacada, mostra a distância fundamental entre a concepção antropológica da bíblia e o modelo dualista da filosofia grega.
Uma distância que continua no Novo Testamento. A antropologia que nele encontramos, das origens até o modelo mais elaborado em Paulo, mostra sempre o mesmo fato:
Para a Bíblia, o ser humano é uma unidade que não pode ser dividida em dois princípios, chamados corpo e alma. Consequentemente também não é possível que, na morte, uma alma se separa do corpo.
Só mais ou menos a partir dos anos 70 do século XX foi que, dentro da teologia católica, aconteceu uma conscientização e também uma discussão cada vez mais acentuada sobre este fato.
(Diante do mesmo desafio se encontra hoje também a liturgia, que, por sua vez, deve superar uma antropologia dualista: cf. Valeriano dos Santos Costa, “A corporeidade na liturgia”, em Revista de Cultura Teológica, 25 (IV) 1998, PP.19s: “... temos que enfrentar duas realidades que não respondem mais à busca atual da compreensão do corpo: o dualismo axiológico grego... e o dualismo metodológico moderno (que separa corpo e espírito como duas realidades subsistentes em si mesmas)"
Mencionamos, em termos de exemplos, dois textos recentes, nos quais se resume de maneira clara a posição de hoje:
“Uma concepção antropológica habitual no Ocidente reduz o ser humano a um compósito binário de dois elementos: o corpo e a alma. Esta antropologia cartesiana, que está muito longe da concepção bíblica do homem... é muito insuficiente para explicar certos fenômenos, situados na fronteira da alma e do corpo. (Jean Vernette, La reíncarnation, p.80).”
Ernest Haag, formula a mesma idéia, no seu artigo: “Alma e imortalidade, a partir do enfoque bíblico”:
“O Antigo e o Novo Testamento concordam totalmente na concepção do que Deus criou o homem como uma unidade psicofísica. Nesta unidade, que é a sua essência. Deus o destinou para uma existência incorruptível... Em nenhum caso, no testemunho dos textos bíblicos a noção “alma” significa um ser puramente espiritual que, em si mesmo, independentemente do corpo, já possuí a imortalidade ou a incorruptibilidade. A noção de “alma” é, para o Antigo e para o Novo Testamento, a designação para o ser humano, que é marcado de maneira global pela sua natureza espiritual e que, por causa disso, é aberto para Deus...” (Ernest Haag. “ Seele und Unsterblichkeit in biblischer Sicht”, in VV.AA., Seele, problembergriff christlicher Eschatologie, pp.92-93).
A partir de tal posição e, no decorrer de muitas discussões, chegou-se, na Teologia, a nova compreensão daquilo que acontece com o ser humano na morte. A base desta nova concepção foi a conscientização crescente de que a alma, de fato, não pode ser compreendida em termos de uma substância separada do corpo.
Ela, pelo contrário, deve ser compreendida como princípio integrativo do ser humano, de tal maneira que nunca ela pode ser separada do corpo, em oposição ao que o dualismo grego ou cartesiano formularam.
(BLANK, Renold. Escatologia da Pessoa. São Paulo, Paulus, 2000, PP.80-82)
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